1 - Na oitava do Natal, a Igreja celebra a festa litúrgica de Santa Maria, Mãe de Deus, sublinhando um aspecto central do mistério da Encarnação: a maternidade divina de Maria. Por vontade expressa dos últimos Papas, este dia é particularmente consagrado a uma meditação sobre a paz, e tem sido assinalado com uma Mensagem Pontificia sobre a Paz. O conjunto destas Mensagens constitui um vasto magistério sobre as exigências e os caminhos da paz.
No primeiro dia do ano 2000, início do Grande Jubileu, a mensagem do Papa convida-nos a contemplar o Natal histórico de Jesus e a encontrar n'Ele a fonte inspiradora de toda e qualquer luta pela construção da paz. A mensagem do Anjo aos pastores de Belém, há pouco referida no Evangelho de S. Lucas, oferece-lhe o tema: "Paz na terra aos homens, que Deus ama". Do presépio de Belém brota uma mensagem de esperança, que a Igreja propõe a todos os homens no início de um novo milénio: "Deus ama todos os homens e mulheres da terra e dá-lhes a esperança de um tempo novo, um tempo de paz". Para o Santo Padre esta mensagem de esperança está inteiramente ligada ao Ano Jubilar: "O Grande Jubileu está indissoluvelmente ligado a esta mensagem de amor e reconciliação, que traduz as mais autênticas aspirações da humanidade no nosso tempo ".
A verdadeira paz, que não seja apenas a ausência de guerra, mas o respeito e o cultivo de todos os valores da pessoa humana, sendo tarefa dos homens, é sempre um dom de Deus, como ouvíamos na primeira leitura do Livro dos Números: "O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz". A maior bênção de Deus, que pode trazer-nos a paz, é o nascimento de Cristo, Verbo de Deus encarnado. Segundo a liturgia judaica, oito dias depois do nascimento do Menino, era-lhe posto o nome. Chamaram-lhe Jesus; mas o profeta Isaías tinha dito deste Menino que nos foi dado: "dão-lhe o seguinte nome: Conselheiro Admirável! Deus Valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz".
Ao olhar a complexidade da construção da paz neste nosso mundo do fim do milénio, a nossa fé em Jesus Cristo conduzir-nos-á em busca da paz, na complexidade dos problemas actuais da humanidade. Acreditar que Cristo é a nossa paz não é um convite a que não nos empenhemos nos caminhos humanos de construção da paz. Antes pelo contrário: seguros da força do Espírito, Cristo e a Sua Palavra enviam os cristãos para a primeira linha desse combate, sabendo dar as mãos a todos os construtores da paz.
2- A primeira condição da paz é o respeito pela dignidade da.pessoa humana, que deve exprimir-se, nas sociedades, na generosidade dos comportamentos, na rectidão das leis, na concepção das políticas económicas e de desenvolvimento, na vitória sobre os egoísmos, individuais e colectivos. Onde a dignidade do homem for espezinhada, nunca poderá haver paz. Era já essa a mensagem de S. Paulo aos Gálatas. Em Cristo o homem é liberto de todas as escravidões, porque adquiriu, no Espírito de Jesus, a qualidade de filho. "E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espiríto de seu Filho que clama: «Abbá - ó Pai». Assim, já não és escravo, mas filho. E se és filho, também és herdeiro por obra de Deus ".
A luta pela paz passa, hoje, pela vitória sobre as diversas formas de escravidão que subsistem no mundo contemporâneo: o subdesenvolvimento e a pobreza; a luta fratricida no interior dos próprios Estados, tantas vezes fomentada por interesses económicos, anónimos e gigantescos e alimentada por tensões étnicas, culturais e até religiosas; o trabalho infantil; o comércio da droga e da prostituição; o drama dos refugiados de todas as guerras, populações civis hoje menos protegidas que os próprios exércitos. E por detrás de cada situação de escravatura há a prepotência de alguém pessoas e instituições. João Paulo II afirma-o corajosamente na sua mensagem: "na raiz de tanto sofrimento, está uma lógica de prepotência, alimentada pelo desejo de dominar e explorar os outros, por ideologias de poder ou utopia totalitária, por nacionalismos ou antigos ódios tribais". A dar crédito a notícias recentemente dívulgadas, o drama incomensurável de povos inteiros a que assistimos hoje, decidiu-se à mesa dos grandes deste mundo, onde os seus interesses não recuam perante o drama generalizado das populações.
3- Mas de pouco nos servirá sublinhar o drama se não estivermos dispostos a identificar os meios e os caminhos da nossa participação na construção da paz. Sublinharei alguns apontados pelo Santo Padre na sua Mensagem para este início do ano 2000:
* A dimensão universal da construção da paz. Verifica-se, hoje, que os principais obstáculos à paz não se resolvem com o empenhamento de um único país, mas supõe o empenho concertado de toda a comunidade das nações. Esta exigência corresponde a um dos sinais do nosso tempo, a consciência crescente de que a humanidade constitui uma única família. Diz o Santo Padre: "na base da busca da paz há-de estar a certeza de que a humanidade, apesar de ferida pelo pecado, pelo ódio e pela violência, é chamada por Deus a formar uma única família. Este desígnio divino deve ser reconhecido e secundado, promovendo a busca de relações harmoniosas entre as pessoas e os povos, numa cultura comum de abertura ao transcendente, de promoção do homem e de respeito pela natureza ".
Mas isto exige urna profunda mudança de perspectiva: o bem da humanidade prevalece sobre os interesses particulares dos Estados e dos grupos. A paz é, frequentemente, ameaçada pela defesa intransigente de interesses dos Estados, das comunidades, dos grupos étnicos ou culturais, mesmo que isso prejudique a humanidade como um todo.
* A paz passa pela luta contra a pobreza e o subdesenvolvimento. Esta batalha só será vencida através da solidariedade universal em que se aceite o princípio do destino universal dos bens da terra, dando um sentido novo à legitimidade da propriedade privada, que se justifica pela sua função social. Os pobres do mundo de hoje têm de se sentir protagonistas da sua luta contra a pobreza; não só não podem ser espoliados dos bens que lhes permitirão esse campo de iniciativa, mas devem ser ajudados nessa luta, libertos de dívidas que os acorrentam, da corrupção que os degrada, da ignorância que os enfraquece.
Esta dimensão universal do desenvolvimento, como caminho da paz, é um desafio a novos modelos económicos e de desenvolvimento e a um progresso criativo do próprio direito internacional. As ciências jurídicas e económicas são, hoje, fortemente interpeladas pelo dinamismo de globalização dos problemas e pelas exigências da solidariedade universal.
* Os construtores da paz. Este projecto de uma humanidade nova só será possível se crescer, cada dia, o número dos homens e mulheres de boa vontade que sacrificam as suas vidas e dedicam as suas carreiras à causa da paz. Jesus dedicou-lhes uma das bem-aventuranças: ""bem aventurados os construtores da paz ". João Paulo II dedíca-lhes uma página de justo reconhecimento: "É forçoso recordar quantos - e são inúmeros - contribuíram para a afirmação dos direitos humanos e a sua solene proclamação, para a derrota dos totalitarismos, para o fim do colonialismo, para o avanço da democracia, para a criação de grandes organismos internacionais. Ofereceram-nos exemplos luminosos e proféticos aqueles que orientaram as suas opções de vida pelo valor da não-violência. O seu testemunho de coerência e fidelidade, mantido muitas veres até ao martírio, deixou escritas páginas esplêndidas e ricas de lições.
Entre os que agiram em nome da paz, há que incluir aqueles homens e mulheres que, com o seu desvelo, tornaram possíveis grandes progressos em todos os campos da ciência e da técnica, consentindo vencer doenças terríveis, melhorar e prolongar a vida".
São chamados a estar na primeira linha destes construtores da paz os governantes e responsáveis das nações, cuja missão não se esgota na defesa dos interesses do próprio país, mas na busca da harmonia universal. São funções que supõem competência, abertura de espírito, generosidade sem limites. Dias virão em que os povos escolherão os seus govemantes a partir de critérios da construção da justiça e da paz.
É preciso conquistar para a causa da paz, sobretudo os jovens, o que supõe o empenhamento de pais, professores e educadores. A humanidade só construirá a paz se na educação se denunciarem todas as manifestações de egoísmo, de violência, de consumismo materialista; se se cultivar, com entusiasmo, o ideal generoso de construtores de um mundo novo.
Que Nossa Senhora, a Mãe de Deus, nos ensine a acolher no coração todos os desejos generosos de paz e de harmonia.
Lisboa, 1 de Janeiro 2000
+ JOSÉ, Patriarca de Lisboa